Sissi Freeman ajeita o cabelo do pai antes de começar a entrevista. Em 1994, ano em que Christopher Freeman comprou a fabricante de produtos de higiene Granado, uma empresa de 124 anos que produzia um único produto – talco de polvilho antisséptico -, ela tinha apenas 14 anos. A hoje diretora de marketing e vendas acompanhou a saga do pai para transformar a engessada empresa numa das mais conhecidas marcas brasileiras de perfumaria e cosméticos, com mais de 800 produtos, 97 lojas próprias e lucro ano passado na casa dos R$ 220 milhões.

“Hoje eu tenho a Sissi, meu braço direito, mas há 30 anos eu estava absolutamente sozinho quando tomei a decisão mais arriscada da minha vida, que deu certo, mas também podia dar tudo errado”, diz Freeman.

Estamos numa das salas de um imponente prédio de 22 andares – dois deles ocupados pela Granado – no Porto Maravilha, centro do Rio. Freeman é um inglês econômico nos gestos e nas palavras. Enquanto uma funcionária da empresa arruma a mesa de café da manhã, ele resume em uma frase a decisão que tomou em 1994: “Fui contratado para vender a Granado e, no meio do processo, eu mesmo decidi comprá-la”.

Nascido em Newcastle, norte da Inglaterra, Freeman chegou ao Brasil em 1976, aos 29 anos, para trabalhar como consultor financeiro em uma das filiais do Bank of Boston, em São Paulo. Quatro anos depois, surgiu a oportunidade para ser transferido por um salário maior para uma sede do banco em Boston, nos EUA, onde ficou até 1988, ano em que foi convencido pela esposa, a brasileira Clicia Lutti, com quem tem três filhos, a se mudar definitivamente para o Rio.

Os primeiros anos da volta ao Brasil foram duros, de muito trabalho como consultor financeiro independente, aprendendo a lidar com o vaivém da economia brasileira. “Todo mundo que faz negócios no Brasil está mais acostumado com as crises do que qualquer outro empresário do mundo. Percebi logo, na prática, que aqui é o país em que tudo acontece quando você não espera e quando você espera nada acontece.”

Em 1994, Carlos Granado, neto do fundador da Granado, José Coxito, contratou Freeman para elaborar um plano de venda da companhia. Durante muito tempo, a Granado, fundada no fim do século XIX, foi sinônimo de excelência – Dom Pedro II, fã do talco de polvilho antisséptico, era o cliente mais ilustre. Com o passar dos anos, porém, a empresa ganhou o outros concorrentes e não se modernizou, a ponto de o neto do fundador decidir vendê-la.

Freeman constatou que, sim, a empresa tinha vários problemas, mas uma marca poderosa. O país vivia os problemas econômicos de sempre, com descontrole da inflação e recessão, mas ele decidiu arriscar. Pediu dinheiro a amigos, juntou US$ 8 milhões (mesma cifra do faturamento anual da empresa à época) e avisou Carlos Granado que havia conseguido um comprador: ele próprio. Freeman levanta os dois braços, ao recordar a decisão mais ousada da sua vida. “Sim, fui meio maluco, mas dei muita sorte.”

Duas semanas após a assinatura do contrato, o Plano Real entrou em vigor. A estabilização da economia ajudou a Granado a navegar em mares mais tranquilos, mas isso, sozinho, não explica o sucesso de Freeman como empresário. “Eu logo percebi que precisava, sim, preservar a tradição da empresa, mas não podia ficar refém do passado. Tinha que mudar muita coisa ali”, diz. Ele manteve, por exemplo, o talco de polvilho antisséptico, uma decisão acertada (a empresa vende atualmente cerca de 1 milhão de frascos por mês), mas decidiu acabar com a linha de sabonetes, na época fabricados a partir de ingredientes de base animal.

Era preciso criar outra linha de sabonete – e aí ele quase enlouqueceu. A mulher e os filhos, também. Sissi ri ao lembrar dessa fase de experimentos. “Eu fui a principal cobaia.” Freeman precisava acertar a fórmula certa dos novos sabonetes e os levava para casa para serem testados. Um sabonete mais estranho que o outro. Um não fazia espuma direito, outro era colorido demais, outro não tinha um cheiro agradável. “É, os meus filhos penaram até a gente conseguir acertar a fórmula.”

Freeman tomou outras decisões que se mostraram, com o tempo, acertadas. Na época, metade do faturamento da Granado vinha da venda de produtos próprios e outra metade das drogarias que pertenciam à empresa, mas que vendiam produtos de outros grupos, principalmente remédios. O novo dono se desfez das farmácias e decidiu investir tudo na remodelagem da marca, processo que levou anos e contou com a ativa participação de sua primogênita.

No fim da década de 1990, Sissi havia se mudado para os Estados Unidos, onde começou a graduação em ciências políticas e economia na Universidade de Georgetown, em Washington, um curso sem qualquer relação com a perfumaria. A compra da Granado pelo pai acabou mudando o rumo das coisas e Sissi, mesmo a distância, envolveu-se naturalmente com o dia a dia da empresa.

“Nas férias da faculdade, ela sempre trazia alguma novidade do mercado de perfumaria americano. Sissi sempre foi muito inquieta e dedicada, ficava pesquisando por conta própria as lojas de lá para ver de perto como funcionava a venda de cosméticos”, conta Freeman.

Quando passou a trabalhar como braço direito do pai, já de volta ao Brasil, Sissi teve participação ativa em decisões importantes da empresa, como convencer Freeman a manter as embalagens antigas da Granado valorizando, com isso, a história centenária. Na logomarca, a palavra “Farmácias” voltou a ser escrita com “Ph” e o ano da fundação, 1870, ganhou destaque nas embalagens. Uma sacada genial, numa época em que as linhas vintage ainda não estavam na moda.

Freeman teve o mérito de ouvir o que a filha tinha a dizer, percebendo que ali podia começar uma parceria de sucesso entre um empresário pouco antenado e Sissi, curiosa e inquieta, de olho em todas as tendências. Foi da primogênita, por exemplo, a ideia de contratar, em 2005, o conceituado designer francês Jérome Bérard, que havia trabalhado com grifes como Dior e Tiffany, para cuidar do visual dos produtos.

Nem tudo deu certo ou saiu como planejado. Freeman levanta os braços ao lembrar das inúmeras crises que enfrentou, mais por causa dos solavancos da economia brasileira do que por decisões erradas da empresa. Nada que ele não soubesse quando decidiu virar empresário ainda em tempos de hiperinflação e de planos econômicos mirabolantes. O primeiro que deu certo ajudou a diminuir os perrengues, mas não o livrou das dores de cabeça inerentes ao processo de adequação de uma marca.

“Houve momentos em que pensei em largar tudo e voltar para a Inglaterra, mas isso durou apenas alguns minutos”, brinca. Recentemente, durante um encontro num restaurante no Rio, a mulher de um jogador brasileiro, que havia atuado por anos na Inglaterra, disse que estava com saudade de Middlesbrough, outra cidade industrial da Inglaterra, assim como Newcastle. “Ela me mostrou fotos das docas, do céu cinzento, e eu só pensava: ‘Não é possível que ela tenha saudade de um lugar como esse’.”

Freeman diz que o estilo pé no chão o ajudou a suportar as crises e se manter longe da tentação nos momentos de sucesso. Quando a Granado começou a apresentar bons resultados na sua mão, muitas pessoas tentaram convencê-lo a transformar a marca numa franquia, o que ele sempre recusou. As quase cem lojas são todas próprias.

“Eu sempre tive uma visão de longo prazo, uma estratégia de pensar a companhia por etapas, não deixando de fazer o que é preciso, mas sem apressar as coisas. As pessoas aqui sabem que eu funciono assim”, diz Freeman. “Muita gente fica frustrada com esse meu estilo conservador, ficam pedindo expansão, expansão, expansão. Mas tenho minhas convicções e responsabilidades, de manter viva uma empresa de mais de 150 anos. Não posso correr o risco de simplesmente matá-la porque fui ambicioso além da conta.”

Desde que Freeman assumiu a Granado, a empresa não teve retração de vendas ou resultados negativos. O conservador e calculista empresário soube a hora certa de dar um grande passo nos negócios. Em 2004, uma década depois de virar CEO da companhia, o lance mais ousado: a compra da marca de sabonetes Phebo, movimento que veio junto com o desejo de expandir as lojas e de repaginar a marca.

Dez anos depois da compra da Phebo, outro grande investimento: a inauguração da fábrica da Granado em Japeri, na Baixada Fluminense. Um terreno de 400 mil m2 de onde saem, por dia, cerca de 800 mil produtos da Granado e Phebo. É o grande orgulho do empresário. “Quando instalei a fábrica, Japeri era uma típica cidade dormitório. Não tinha nada. Hoje temos mil funcionários diretos e indiretos vivendo ali, com toda a estrutura necessária. Mudamos a cara da cidade. É muito gratificante saber que contribuí para isso.”

Hoje, Freeman se considera mais brasileiro do que britânico. “É uma conta fácil de se fazer: tenho mais tempo de Brasil do que de Inglaterra. Cheguei aqui em 1976, não se esqueça disso”, brinca. Sissi faz coro: “Adivinha qual é a bebida preferida do meu pai?”. O repórter responde: “Cachaça”. Ela está com a resposta na ponta da língua. “Não, é vodca. Cachaça é a bebida preferida dos gringos que estão aqui. Meu pai é um brasileiro como todos os outros.”

Os laços de Freeman com o Brasil são tão fortes que ele fez uma promessa para si mesmo: nunca vender o controle acionário da Granado para um grupo estrangeiro, independentemente do valor da proposta. Freeman resistiu bravamente a várias propostas de compra da empresa brasileira, de gigantes internacionais do setor – e no momento em que mais precisou de dinheiro.

Só na construção da fábrica em Japeri e a estrutura em torno dela, a Granado desembolsou cerca de R$ 300 milhões. O empréstimo para fazer esse investimento atormentou Freeman por anos. “A gente pagava 20% de juros só de dívida. Um horror”, lembra. Até que em 2016 surgiu a proposta do grupo espanhol Puig, que atua no segmento de moda e perfumaria, com marcas como Carolina Herrera e Paco Rabanne.

Diferentemente de outras empresas, que não abriam a mão de ter o controle acionário da Granado, a Puig aceitou desembolsar cerca de R$ 500 milhões para adquirir 35% do grupo brasileiro. “Ficamos muito satisfeitos com o negócio. A Puig, como a gente, é uma empresa familiar, na terceira geração. Soube entender o quanto é importante para o meu pai continuar no controle da empresa, depois de tudo que batalhou por ela. É a vida dele”, diz Sissi. Freeman, no seu estilo, lembra da importância do negócio para a saúde financeira da Granado. “Quitamos o empréstimo e ficamos livres daqueles juros indecentes.”

Em 2018, dois anos após a parceria com a Puig, crescendo a todo vapor, a Granado mudou de endereço. Deixou a acanhada sede da rua Direita, hoje Primeiro de Março, para ocupar dois andares do Edifício Vista Guanabara, no Porto Maravilha. A antiga sede, transformada em loja, abasteceu o mobiliário do novo escritório, uma forma de manter o imaginário de empresa centenária.

Freeman levanta-se e vai em direção à janela, no 15º andar, com uma bela vista do centro do Rio. “Foi importante a mudança para cá. Não cabia mais nada na antiga sede, a gente chegou a alugar um prédio do lado da rua”, lembra. “Eu não queria perder os laços com uma história tão antiga e bonita, então trouxe o máximo de coisas de lá para cá”, diz.

Da escada que liga os dois andares reservados à empresa, é possível ver uma enorme placa escrita “Pharmacia”, a mesma que adornava a fachada da Granado em 1870. Há também outros móveis com mais de cem anos de história espalhados pelos 3 mil m2 divididos em dois andares inteiros. “Quem entra aqui dá de cara com esse misto de modernidade com tradição. Esse é o nosso espírito. Quero que as pessoas que trabalham aqui tenham conforto, mas que, ao mesmo tempo, saibam para qual empresa estão trabalhando.”

A Granado foi uma das primeiras empresas a se transferir para o Porto Maravilha, após o processo de revitalização da região. Chegou antes de uma das grandes concorrentes, a L’Oréal. Com a pandemia, em 2020, as duas empresas habitaram praticamente sozinhas a zona portuária. “Isso aqui virou um bairro fantasma. Esse prédio aqui tem 22 andares. Só dois estavam ocupados, pela gente. Foi algo terrível de se ver”, lembra.

A pandemia adiou um dos sonhos de Freeman: acelerar a expansão internacional da Granado, iniciada em 2013, de forma discreta e com os pés no chão: um espaço na seção de beleza da loja de departamentos Le Bon Marché, uma das mais luxuosas de Paris. A experiência mostrou-se bem-sucedida: os clientes europeus aprovaram produtos como o Esfoliante Corporal Castanha do Brasil.

“Os produtos bem brasileiros, por conta da variedade de extratos vegetais, são os que fazem mais sucesso”, diz Freeman. “Acho que as embalagens coloridas, com estampas bem brasileiras, também ajudam a vender. Eles [europeus] ficam intrigados, curiosos”.

A Granado, que já conta com três lojas próprias em Paris e estava de olho no mercado londrino (chegou à capital inglesa do mesmo jeito que chegou à França, discretamente, vendendo seus produtos numa seção da Liberty, a famosa loja de departamentos), abriu neste ano duas lojas de rua em Londres, uma no bairro de Covent Garden e outra em Chelsea – a inauguração desta última, em maio, contou com uma instalação em homenagem à cantora Carmen Miranda.

Freeman sorri ao ser perguntado se as duas lojas em Londres podem, em algum momento, fazê-lo retornar às origens, ou seja, resultar na sua volta à Inglaterra. “Toda vez que tem uma discussão interna aqui, ou algum problema grande para resolver, eu digo que vou largar tudo e comprar o Newcastle [seu time de coração]. Ninguém me leva a sério, até porque essa seria uma encrenca muito maior. E passei da idade de arrumar confusões para a minha vida.”

Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2024/08/30/como-um-britanico-fez-da-granado-uma-das-marcas-brasileiras-mais-conhecidas-de-perfumaria-e-cosmeticos.ghtml

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