Num mercado cada vez mais competitivo, o gigante de perfumes e cosméticos mudou tudo na gestão e investiu pesado em tecnologia. O objetivo: um novo ciclo de expansão
A fábrica do Grupo Boticário em São José dos Pinhais, na Grande Curitiba, é, talvez, um dos exemplos mais bem-acabados de empresa brasileira capaz de abraçar a transformação digital — um conceito da moda apesar de etéreo — para realçar suas fortalezas históricas. Em meio a linhas de produção de perfumes, cremes e óleos, uma sala climatizada com jeitão de estufa armazena centenas de lírios japoneses. As flores vêm de Holambra, no interior paulista, para desabrochar ali, em tanques de água a poucos metros da linha de produção, em um espaço com temperatura sempre na casa dos 20 graus Celsius. As pétalas são colhidas uma a uma e, então, vão para caixas com gordura vegetal responsáveis por captar o perfume da flor. Tudo isso gera o óleo essencial do lírio, responsável pelo toque final das fragrâncias da linha de perfumes Lily, um dos carros-chefes da marca.
A poucos metros dali, um supercomputador conhecido pelo apelido de “nariz digital” ajuda os perfumistas do Boticário a catalogar os cheiros obtidos na fábrica. Equipado com um software de inteligência artificial para decodificar aromas, o equipamento permitiu ao Boticário lançar uma linha de perfumes, em essência, feita por computadores — os cheiros tidos como mais aprazíveis pelos algoritmos da máquina foram escolhidos para chegar ao consumidor.
A guinada tech do Boticário vem a reboque de uma complexidade crescente para entender o cliente, cujos gostos e desejos mudam com a rapidez de um vídeo do TikTok. “O comportamento do consumidor mudou drasticamente, e nós precisamos estar atentos a essas mudanças”, diz Miguel Krigsner, fundador do Grupo Boticário. “Uma empresa como a nossa tem de ser totalmente apaixonada pelo varejo. O consumidor é a razão da nossa existência.”
O Grupo Boticário tem motivos de sobra para comemorar o momento da empresa. Em 2021, o faturamento de 18,1 bilhões de reais foi 15% superior ao do ano anterior. O resultado veio num momento de inflação beirando os 10% e perda do poder de compra do brasileiro — perfumes costumam estar entre os primeiros a serem cortados da lista de desejos. A expansão em 2021 não foi algo isolado: em nove anos, a empresa triplicou a receita. Além disso, as fontes de receita cresceram. Na última década, o grupo saiu de uma marca para sete. Além do Boticário, estão no portfólio Eudora, de vendas diretas, Vult, de cosméticos populares, Quem Disse, Berenice?, de itens de beleza voltados para os mais moderninhos, The Beauty Box, focada em produtos de marcas internacionais, Beleza na Web, um e-commerce, e OUi, de alta perfumaria.
Tudo isso elevou o investimento a patamares inéditos. Neste ano, o Boticário deve investir 900 milhões de reais, alta de 30% sobre 2021 e o triplo de 2020. Boa parte será aplicada num upgrade completo da fábrica no Paraná, a primeira do grupo. (Há também uma planta em Camaçari, na Bahia.) Por trás do movimento está a intenção do grupo de acelerar a diversificação do portfólio. Desde 2014, o número de produtos dobrou: hoje são mais de 9.600.
Em meio aos números superlativos, dignos de celebração em muitas empresas, o Boticário resolveu mudar por completo a estrutura da companhia nos últimos meses. Em março do ano passado, Artur Grynbaum deixou a cadeira de presidente executivo, um cargo ocupado por ele havia 13 anos, para dar lugar a Fernando Modé, executivo com 20 anos de trajetória na companhia e que desde 2015 era o vice-presidente corporativo do grupo, responsável pelas áreas de finanças, tecnologia e operações. Grynbaum virou vice-presidente do conselho de administração, ainda comandado por Krigsner, fundador do grupo em 1977 e cunhado de Grynbaum.
A dança das cadeiras mexeu também com a maneira de tocar o negócio. Até então, as sete marcas eram geridas separadamente — cada uma era praticamente uma miniempresa dentro do grupo. Agora boa parte das equipes, em particular as ligadas à liderança, trabalham em conjunto, num modelo de gestão matricial empregado em grandes empresas mundo afora, de Apple a Zara. Para isso, novas vice-presidências foram criadas, como a de tecnologia, responsáveis por olhar para a companhia inteira. As equipes de marketing, por exemplo, hoje estão com o mandato de explorar oportunidades em todas as marcas. “Quebramos as barreiras internas da organização e estamos atuando de maneira mais colaborativa e menos competitiva”, diz Fernando Modé.
A mudança fica nítida em questões do dia a dia do Grupo Boticário — e já mostrou a que veio. Um exemplo é o planejamento de um novo layout de loja. Antes, a mudança muitas vezes não levava em consideração a experiência de uma marca irmã cuja equipe estava sentada do outro lado do corredor. Os aplicativos para as revendedoras do Boticário e da Eudora eram pensados separadamente, apesar de ambas disputarem espaço com o mesmo consumidor. Para evitar os retrabalhos inerentes a esse tipo de gestão em silos, no início do ano passado o grupo mudou a função ou o cargo de cerca de 1.000 funcionários, quase 9% da mão de obra. “Todas as grandes mudanças estruturais que fizemos foram em momentos muito bons da empresa, permitindo que olhássemos o futuro de frente”, diz Grynbaum.
O rearranjo acelerou processos até então enroscados. A compra de matérias-primas antes demorava até três meses, entre reuniões intermináveis com gente das sete marcas. Agora depende de uma estrutura só — e o alinhamento costuma tomar 3 horas. Melhorias nos softwares de vendas precisavam ser feitas em janelas específicas para evitar apagões nos sites da empresa em datas-chave, como Natal e Dia das Mães. Agora, com uma turma só de olho em todos os sistemas 24/7, as atualizações ocorrem diariamente — e sem grandes sobressaltos. “O modelo matricial é bastante usado por empresas que tiveram crescimento importante e ficaram mais complexas. O que é preciso é ter atenção para não perder a agilidade e o empreendedorismo das equipes”, diz Betania Tanure, fundadora da consultoria de gestão Betania Tanure Associados.
ANTES E DEPOIS
Com mais de 40 anos, companhia mudou sua forma de gestão no ano passado
45 ANOS DE HISTÓRIA
Fundado em 1977, o grupo tem diversos produtos icônicos em sua história
• 1977 – O farmacêutico Miguel Krigsner abre uma pequena farmácia de manipulação em Curitiba, com o nome O Boticário, inicialmente voltado apenas para medicamentos manipulados
• 1979 – O empreendedor passa a focar cosméticos e fragrâncias e compra um lote de mais de 50.000 frascos de vidro em formato de ânfora, que se tornou símbolo do Boticário. Para usar os frascos, ele criou a primeira fragrância da marca, a Acqua Fresca
• 2004 – Lançamento do Malbec, perfume masculino feito
com álcool de vinho e preparado em barris de carvalho. O perfume é um dos mais vendidos pelo Boticário até hoje
• 2011 – O grupo lança a marca de cosméticos Eudora, com foco em venda direta, e inicia o processo de expansão de marcas
• 2012 – É criada a marca Quem Disse, Berenice?, com foco em mulheres mais jovens, e a Beauty Box, de produtos de beleza importados
• 2018 – O Grupo Boticário compra a Vult, marca com presença em 35.000 pontos de venda
• 2019 – A companhia compra o e-commerce Beleza na Web, que vende produtos de 360 marcas nacionais e internacionais de cabelo, perfumaria, pele, corpo e maquiagem
• 2020 – Compra a GAVB, com foco em inteligência artificial, e a Casa Magalhães, de soluções de tecnologia voltadas para o varejo
• 2021 – Artur Grynbaum deixa a presidência do grupo e passa a ser vice-presidente do conselho. Fernando Modé assume como CEO e a companhia muda seu modelo de gestão
Fonte: https://exame.com/revista-exame/a-guinada-tech-do-boticario/
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