As duas maiores empresas brasileiras do setor de cosméticos estão reforçando suas apostas em bioinsumos para o desenvolvimento de novos produtos.
A Natura anunciou em julho, uma operação inédita de emissão de debêntures verdes atrelados à meta de ampliar o portfólio de insumos rastreados da flora amazônica. O grupo Boticário, por sua vez, incorporou um óleo desenvolvido pela empresa a partir da quinoa, com um método exclusivo que não utiliza solventes orgânicos nem tem adição de outros óleos. O novo insumo passou a integrar todos os produtos da linha Nativa SPA no fim do ano passado.
Estudo da consultoria Mintel aponta que 57% dos consumidores brasileiros se preocupam com os ingredientes usados nos produtos e se eles têm uma origem ética.
A biodiversidade do país atrai empresas e centros de pesquisa do Brasil e do exterior. Atualmente, o órgão que trata do uso do chamado patrimônio genético do país está preparando novas regras para pesquisas e desenvolvimento por parte dos estrangeiros.
Em julho, a Natura finalizou a emissão de debêntures verdes de R$ 1,33 bilhão. A carteira, que atualmente conta com 44 ativos – insumos feitos com elementos da flora usados na fabricação de produtos – deve alcançar 49 ingredientes em 2027. Caso não alcance a meta, o grupo pagará uma multa em forma de remuneração adicional aos detentores dos títulos.
A gerente científica da Natura, Carolina Domênico, afirma que os estudos abarcam aspectos desde as propriedades dos componentes químicos presentes nas plantas, interações com o organismo até a viabilidade de escala industrial.
Ainda segundo ela, em algumas situações, a empresa solicita ao seu time de pesquisadores que busquem determinadas propriedades encontradas em plantas que possam ser apropriadas para a criação de linhas de cosméticos, como um hidratante para cabelos ou um clareador para pele.
“Se queremos trabalhar no noroeste paraense, por exemplo, vamos entender a diversidade de espécies ali, qual a composição dessas espécies e em qual apostaríamos para estudar como um novo ingrediente cosmético. Com isso se abre o leque de oportunidades e traz a lente da ciência para estudar as propriedades químicas dessas espécies”, explica Domênico ao Valor.
Ela afirma que todo o processo é norteado pelo registro de propriedade intelectual das descobertas. A legislação brasileira impede o registro de certos aspectos da produção, como o uso de agricultura regenerativa, mas a companhia pode patentear etapas como um método inovador ou o produto final. É o caso dos produtos da Natura à base de tucumã, que prometem combater a perda de colágeno na pele.
O Boticário também faz pesquisas em um laboratório para o desenvolvimento de novas matérias-primas proprietárias na unidade fabril de São José dos Pinhais (PR), região metropolitana de Curitiba. A unidade conta ainda com uma estufa com cerca de 60 espécies. A empresa investiu R$ 11 milhões na construção desse centro.
A central foi responsável pelo desenvolvimento do bioéster de quinoa, que é um óleo sem adição de outros óleos vegetais nem de solventes orgânicos. O bioéster passou a ser incorporado em toda a linha corporal Nativa SPA, depois de cinco anos de estudos. A companhia detém a propriedade intelectual do produto.
A companhia encomendou um maquinário especial para a fábrica de São José dos Pinhais que processa toneladas de grãos e extrai o óleo. O componente foi desenvolvido pela empresa a pedido do fundador, Miguel Krigsner, após ver a popularidade da quinoa na alimentação em uma viagem de férias ao Peru.
Além do bioéster com o grão andino, o Boticário tem em seu portfólio produtos à base de açaí, cupuaçu e ameixa.
“Nós falamos de bioeconomia há cerca de cinco anos, mas isso é realidade para a indústria brasileira há mais de 50 anos, com empresas como Natura e mais recentemente Boticário, que já estão há muito tempo desenvolvendo produtos a partir da biodiversidade brasileira, antes de haver o termo bioeconomia”, afirma o diretor de desenvolvimento sustentável da Associação Brasileira da Indústria de Beleza, Higiene Pessoal e Cosméticos (Abihpec), Fábio Brasiliano
O Brasil concentra cerca de 20% da biodiversidade mundial, com mais de 46 mil espécies catalogadas após um trabalho de anos da Embrapa. Dentre os ingredientes de destaque na indústria cosmética nos últimos anos estão espécies como açaí, andiroba, carnaúba, copaíba, murumuru, pitanga e maracujá.
Brasiliano pontua que, apesar do destaque da região amazônica na busca por insumos, os biomas brasileiros como um todo são fonte de pesquisas.
A busca por inovação na indústria e o patamar de 7 mil lançamentos anuais, segundo ele, é um dos fatores que impulsionam a pesquisa por novos ingredientes e o diálogo com o poder público para definir modelos de regulação.
Todo o processo deve ser acompanhado de registros no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético (SisGen) e do Conhecimento Tradicional Associado (CTA), plataforma criada a partir do Marco da Biodiversidade, em 2015.
O Brasil tem 20% da biodiversidade mundial, com mais de 46 mil espécies catalogadas
A lei estabelece o pagamento de royalties de 1% da receita líquida dos produtos desenvolvidos a partir das pesquisas, como forma de retornar recursos ao país que abriga as espécies nativas utilizadas.
Desde a vigência da nova lei, segundo a Abihpec, foram aplicados R$ 7 milhões em royalties. Outra opção de pagamento dos direitos genéticos é a aplicação dos valores devidos em projetos de conservação -nesse caso, não é possível mensurar o volume dos pagamentos.
Na avaliação de Gustavo Dieamant, diretor de pesquisa e desenvolvimento do Grupo Boticário, a legislação brasileira é robusta e representa um modelo a ser seguido globalmente.
“Falando sobre biodiversidade de outros países, também é papel da área regulatória avaliar a espécie e o local de coleta para checar a legislação de acesso e repartição de benefícios de outros países para avaliação de impacto. Aqui o grande desafio é que a grande maioria dos países não possui uma legislação tão clara e avançada quanto a Lei da Biodiversidade Brasileira” afirma.
Há um obstáculo, porém, referente aos requisitos de cadastro para empresas estrangeiras na plataforma do SisGen. O sistema solicita às empresas o número de registro do Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), o que pode dificultar a prestação de informações de multinacionais.
Uma dessas empresas é a francesa L’Oréal, que possui um centro de pesquisa e inovação, no Rio de Janeiro, voltado a desenvolver ingredientes renováveis e da biodiversidade brasileira.
No início de julho, o Valor informou sobre mudanças nas regras de uso de material genético por parte de empresas estrangeiras. A multinacional L’Oréal informou, por meio de nota, que, “ciente dos desafios e limitações devido a complexidades” do SisGen, vem buscando junto a autoridades competentes soluções para adequar o sistema. A L’Oréal afirma ainda que está “entre as que mais participaram” das discussões e de grupos de trabalho para a implementação da Lei Federal da Biodiversidade do Brasil.
Brasiliano afirma que atualmente as multinacionais podem optar por esperar uma atualização na plataforma que permita o ingresso sem inscrição no CNPJ, ou se associarem a uma companhia brasileira para regularizarem a operação. Neste caso, porém, estão envolvidas questões quanto à propriedade intelectual e segredos industriais, o que motiva parte das companhias a aguardarem o registro.
Até lá, segundo ele, as empresas podem seguir com as pesquisas em território nacional, mas não estão isentas de registrar as informações no sistema e fazer os repasses devidos dos anos anteriores.
“Se não há previsão, essas empresas multinacionais já devem constituir provisões financeiras para lidar com o custo que vai vir, sabendo que vão precisar repartir 1% da sua receita líquida quando for o momento da regularização”, afirma.
Deixe um comentário