À frente do P&D da categoria de perfumaria do Grupo Boticário, Tiago Martinello tem corrido muito para manter-se atento às inovações que têm potencial para revolucionar, ou, pelo menos, impactar fortemente a centenária arte de criar perfumes. A equipe da companhia paranaense correu muito para fazer de O Boticário a primeira marca do mundo a desenvolver um perfume usando a tecnologia de inteligência artificial. Ao mesmo tempo, a empresa se valeu do teste de quase duas mil fórmulas, criadas por quatro narizes totalmente humanos, até chegar na composição perfeita para sua mais recente criação, a masculina The Blend. Tiago esteve na sede do Pack Gallery, em São onde foi homenageado em almoço. No intervalo, ele concedeu essa entrevista à Atualidade Cosmética.
Na prática, como foi o processo de trabalhar com a inteligência artificial na criação das novas fragrâncias de Egeo?
Nós temos dentro da área de operações do Grupo Boticário o programa Operações 4.0. Ali nós estamos pensando o futuro, como podemos adaptar as novas tecnologias ao negócio, preparando toda a cadeia para isso. Nesse processo, viajamos bastante, olhamos tudo no mundo inteiro e cerca de três anos, eu estava com a diretoria de operações num evento nos USA e lá nós vimos muito fortemente a questão da inteligência artificial. Daí surgiu um pouco desse incômodo, de um questionamento: “Se estamos usando inteligência artificial para tudo, será que não dá para fazer um perfume com essa tecnologia?”. Aquilo ficou na nossa cabeça e, ao voltarmos para casa, abrimos um projeto para ver como poderíamos viabilizar isso. Começamos a mapear o mercado, quem já trabalhava com isso e conversando com alguns parceiros e vimos que a IBM já tinha uma história muito forte com isso. E, ao conversarmos, descobrimos que eles já tinham uma parceria com uma casa de fragrâncias em relação à inteligência artificial. E ai tudo encaminhou para fecharmos a parceria com a Symrise e IBM.
Quais eram os propósitos, o objetivo de usar a inteligência artificial?
Um perfumista consegue trabalhar com diversos ingredientes, só que o número de ingredientes que existe é muito maior do que a capacidade do ser humano processar tudo aquilo. A gente gostaria de utilizar todos os ingredientes possíveis nas melhores combinações de forma mais rápida e inovadora, claro que sempre buscando surpreender o consumidor. Ao fechar a parceria, estabelecemos que queríamos ser a empresa pioneira nisso no mundo e corremos para isso. Tivemos muito trabalho, mudamos alguns projetos que já estávamos conduzindo dentro do grupo e conseguimos rapidamente desenvolver a primeira fragrância utilizando a IA.
E como foi na pratica, vocês brifaram o sistema de inteligência artificial da mesma forma que fazem com os perfumistas?
Sim. Só depois começamos a olhar para o portfólio e a entender qual a marca que teria mais adequação, que faria sentido para o público daquela marca. Aí chegamos a conclusão de que essa proposta cairia melhor com os consumidores mais jovens, a geração Y, mais ligados em tecnologia e isso nos levou à marca Egeo. Mas ninguém sabia disso durante o processo de desenvolvimento. Só no lançamento é que divulgamos. É muito importante ressaltar que nesse processo todo, nunca pensamos em substituir o perfumista ou o avaliador, mas sim, como que poderíamos extrair o melhor de modelo que une um sistema de inteligência artificial e os perfumistas.
Um dos pilares da inteligência artificial é a capacidade de processar grandes volumes de informações. No processo criativo, com que tipo de dados vocês abasteceram o sistema?
Inputamos muitos dados, tanto estruturados quanto não estruturados. Desde uma pesquisa, que é super estruturada, com metodologia, até materiais que vêm da internet, das mídias sociais, que não é uma informação estruturada. O sistema processa tudo isso. Mas, o ponto central, sempre foi manter o consumidor no centro. “O que o consumidor quer?” Essa é a base do nosso trabalho. Apostamos na tecnologia não pela tecnologia em si, mas sim para conseguir agradar mais ao consumidor, inovar mais, surpreendê-los. Então, qual a grande revolução? Com a inteligência artificial conseguimos ampliar a paleta de criação do perfumista muito mais do que qualquer grupo de perfumistas ou todos os perfumistas do mundo conseguem fazer. Isso permite trazer coisas totalmente diferentes para o mercado. Só que temos que sempre nos questionar: “será que o consumidor vai gostar disso?”. E depois é preciso estar com as coisas bem amarradas, ou você terá uma fragrância muito boa, uma embalagem muito boa, mas que não conversa com a comunicação, não conversa com a necessidade do consumidor. E esse perfume, por melhor que seja não vai ser um sucesso.
Com o briefing e esse grande volume de informações, foi mais fácil chegar ao ponto desejado?
Um dos cernes da inteligência artificial é que ela aprende, aperfeiçoa-se na medida em que você a usa e a ensina. Ainda antes de passarmos os briefings, os primeiros testes foram difíceis. Eram milhões de fórmulas, mas não chegávamos em propostas adequadas. Uma fragrância de perfumaria fina é muito complexa, você chega às vezes a ter até 100 ingredientes. Foi preciso treinar o sistema, começando com fragrâncias mais simples, isso foi um trabalho muito forte da Symrise com a IBM. Quando entramos com o briefing, o sistema já estava num nível de maturidade bom. E aí sim, quando entramos com o briefing no sistema foi muito rápido. Rapidamente ele nos apresentou soluções muito dentro do que a gente acreditava. Praticamente não mexemos na fragrância, foi a criação que o sistema trouxe para gente e que aí sim, foram avaliadas por todos nós junto com os perfumistas. E nós entendemos que eram criações inovadoras, que traziam algum risco, porque não são fragrâncias tão comerciais, mas estavam muito dentro do conceito que a gente queria.
A inteligência artificial permite ampliar o uso da paleta, além de tornar o processo mais rápido. Você acha que sistemas como esse podem ajudar a resgatar um pouco da capacidade de pensar mais fora da caixa, que talvez na correria de hoje, com um grande volume de projetos e a necessidade de sempre “vencer” projetos, as casas talvez tenham perdido?
Eu acho que a gente consegue ampliar as possibilidades que hoje podem ficar limitadas, às vezes até por experiências e gostos pessoais, seja do perfumista, seja do avaliador ou até do cliente. Quando você consegue ligar o que o consumidor está falando numa mídia social, que perfume ele experimentou e gostou – excluindo a questão da marca que ainda exerce uma influência muito grande nesse mundo, de mídia e etc. – com a capacidade de ampliar o uso da paleta na criação, eu acho que esse é o ganho da inovação. Os perfumistas têm a sua linha de ingredientes, de acordes e famílias olfativas com as quais eles mais gostam de trabalhar…
Eles têm estilos?
Eles têm estilos. Temos muito bem mapeado qual é o gosto de cada um e do que a gente precisa para cada um, como motivamos e exploramos os pontos fortes de cada perfumista. Isso é parte do nosso trabalho dentro do NIO – Nucleo de Inteligencia Olfativa que criei a cerca de cinco anos.
Vocês já direcionam os perfumistas quando fazem os briefings?
Dependo do projeto, pois não é uma decisão totalmente nossa. Dentro das casas existe toda uma sistemática de utilização dos perfumistas além da própria questão da disponibilidade deles também. Mas, às vezes, fazemos projetos exclusivos com determinados perfumistas, porque queremos explorar o know how dele ou até a imagem daquele criador, por ele ser reconhecido por fazer um floral muito bom, uma madeira inovadora ou um acorde frutado que é o único.
Nesse processo de criação, como vocês se equilibram entre inovação e risco?
Sempre buscamos a inovação, mas isso depende muito de cada marca. Tenho marcas que não podemos seguir uma linha de inovação muito disruptiva, porque isso não conversa com o coração dela efetivamente. Nós temos sempre uma escala de inovação, que aponta desde coisas que estão muito próximas ao coração de cada marca até as coisas que são mais distantes. É uma discussão de régua e calibração e não é uma régua linear, é uma régua 360º, que lhe permite ir para qualquer lugar. Você pode puxar mais madeira, ou puxar mais para o verde, ou reforçar o aspecto floral… Não é algo linear e justamente isso é a Beleza da Perfumaria.
Como você acredita que a inteligência artificial pode impactar o futuro da perfumaria?
Eu acredito muito em novas tecnologias, como a inteligência artificial. Estamos muito próximos das casas, acompanhando o que esses têm desenvolvido. Fizemos uma viagem, recentemente, para conhecer o Carto (o sistema de inteligência artificial da Givaudan), ficamos surpresos com a ferramenta, criamos uma fragrância rapidamente durante a visita. Mas, cada um desses sistemas, consegue trabalhar numa parte, num aspecto do processo. Você não tem no mercado hoje um sistema que faça tudo, que integre todos os aspectos da criação. E por quê? Porque na perfumaria você também tem sentimento e experiências. Criações que lá atrás funcionavam e agora não funciona mais e coisas que testadas lá atrás não funcionaram e que, hoje em dia, talvez funcionem. Você nunca vai substituir o ser humano. Pode criar um sistema super tecnológico, que consiga ser assertivo, rápido, mas ele não tem essa experiência, ele não tem esse feeling que o ser humano tem de falar – essa fragrância tem algumas características que a gente procura numa fragrância?. São algumas características que valorizamos e que ao sentiremos determinada fragrância, podemos dizer: “essa fragrância tem isso”, e são justamente esses atributos que fazem com que essas fragrâncias sejam um sucesso.
Você pode destacar alguns desses atributos que vocês buscam sempre numa criação?
A gente se preocupa muito com duração, então nossas fragrâncias de maneira geral – e a gente estuda muito isso – e isso é reconhecido no nosso mercado, que nossas fragrâncias duram mais do que as outras, então é um ponto que a gente testa muito e às vezes até escolhe alguns caminhos que facilitam isso, tem essa análise sim. Agradabilidade também é algo que a gente pesquisa muito junto aos consumidores e é algo que se encontra nas nossas fragrâncias. Precisamos de uma agradabilidade alta. Claro, tem horas que inovamos e ariscamos mais e aí temos fragrâncias no portfólio que são tão inovadoras que não tem um nível de agradabilidade tão alto. Nós inclusive sistematizamos esse processo, ou seja, como eu trato uma fragrância mais comercial e como eu trato uma fragrância mais inovadora, o que se reflete em diversos pontos, como os tipos de testes que são realizados. Existe muita análise sobre isso e uma série de estudos para chegarmos na fragrância com os atributos ideias.
E como você avalia a inovação no mercado de perfumaria hoje? Para onde caminha o futuro das fragrâncias?
Vejo uma tendência muito grande nas casas de estudarem ingredientes para trazerem coisas que sejam mais potentes de um lado e para melhorar as cadeias de suprimentos deles. Hoje, temos algumas cadeias de produção que são críticas, justamente pela questão da rastreabilidade. Blockchain é algo que vem ganhando espaço. Existe uma possibilidade disso se tornar um pouco maior, de você conseguir rastrear os ingredientes num nível de maior profundidade. A outra questão que vejo como uma tendência muito grande é a de transparência e segurança. Cada vez mais as pessoas vão querer saber o que tem na fragrância. Esse tema é um pouco complicado, porque hoje o mercado de fragrâncias é dominado por poucas casas. São poucos fornecedores que têm o domínio de tudo aquilo. Cada vez mais e, principalmente, alguns países, estão querendo saber o qual a composição dos perfumes, o que faz bem, o que faz mal, o que é seguro e o que não é. Para que o consumidor esteja ciente ao escolher sobre isso.
Como trazer a questão da sustentabilidade para o mercado de fragrâncias?
Esse é um ponto no qual estamos trabalhando forte, mas que é extremamente complicado hoje. “Como eu falo em sustentabilidade em fragrâncias de uma maneira clara, de uma maneira que o consumidor entenda que uma fragrância é mais sustentável por causa de alguns elementos, de alguns aspectos objetivos?”. Hoje acho que ainda é difícil justamente pela grande quantidade de ingredientes utilizados, e cada um com suas características de sua cadeia produtiva. Em embalagem já estamos em outro nível, mas na fragrância propriamente dita a tendência é falarmos cada vez mais de transparência e segurança de ingredientes. Tem muito trabalho a ser feito.
E a personalização? Fala-se muito em cosméticos personalizados, feito para a pessoa quase que sob medida. Em que pé a perfumaria está nesse sentido? Você vê no médio e no longo prazo, empresas grandes, como o Grupo Boticário, oferecer a possibilidade de um perfume único, a partir da combinação de bases e acordes pré-determinados, como já o fazem algumas marcas de maquiagem?
Acredito que estamos evoluindo no tema, vou dividir em dois aspectos para facilitar o racional. Primeiro, que não é uma questão do Grupo Boticário, é uma questão do consumidor, se ele esta totalmente preparado para personalizar seu perfume. Talvez existam grupos que já busquem isso e precisamos entender suas expectativas e atendê-los. O segundo aspecto é que quando a gente fala em personalização, existem várias elementos que podem ser personalizados tornado o produto especial, como por exemplo escrever o nome no frasco ou no cartucho. Até chegarmos ao ponto de permitir que o consumidor faça a sua própria fragrância – seja na loja, seja em outro lugar – algo mais distante, que envolvem questões regulatórias inclusive. Mas, isso é uma jornada, que tem de começar com uma personalização do atendimento, da experiência do consumidor. E isso, nós já estamos oferecendo nas nossas novas lojas. Na nossa flagship store, em Curitiba, o atendimento é exclusivo. Tem alguns produtos que você só encontra lá, o que torna especial a própria experiência de ir até a loja. Você tem muitas possibilidades.
Mas você vê viabilidade em caminharmos para fragrâncias personalizáveis?
É um caminho longo pois o mercado não é tão maduro, quando na Europa e USA. Quando você vai falar de fragrância, o nosso público ainda não tem muito vocabulário, existe um desafio para se expressar. Ainda vem se é forte, fraco, fresco… Um amadeirado, um doce, não sai muito disso. Se simplesmente você chegar para o consumidor e falar que ele vai ter uma experiência legal de misturar coisas, sem contexto, sem uma historia, uma razão, talvez ele não ache a experiência tão bacana. Por isso acredito que é um caminho mais longe chegar neste nível. Até lá tem muita coisa legal para fazer que o consumidor gosta, e sim acredito que a customização, a personalização é um mercado que vai crescer.
Fonte: http://www.cosmeticanews.com.br/leitura.php?n=perseguindo-a-inova-o-mirando-no-consumidor&id=7872
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