Companhias como Amyi, Lenvie e Felisa crescem com fragrâncias que reúnem toque pessoal e essências sofisticadas; segmento atrai gigantes como o Grupo Boticário

Em abril de 2020, seis meses depois de lançar a casa de perfume Amyi – a palavra em tupi para “lado a lado” ou “entrelaçados” – Luciana Guidi e suas sócias se viram com um bom problema nas mãos. Um de seus perfumes tornou-se finalista no prestigiado concurso “The Art and Olfaction Awards”, nos Estados Unidos. Mesmo sem vencer, a Amyi- primeira e até agora única marca brasileira a chegar à essa fase do prêmio – despertou o interesse do público. “Em seis dias vendemos todo o estoque que tínhamos reservado para um ano e meio”, conta a empresária.

O episódio ilustra a importância crescente de um segmento conhecido no exterior, mas que permanece novidade no Brasil – a perfumaria autoral. Também chamados de perfumes de nicho, esses produtos se diferenciam do mercado de massa por uma série de características. As mais relevantes são que o perfumista, o profissional que assina o produto, tem mais liberdade para criar, enquanto as matérias-primas, de alta qualidade, estão disponíveis em quantidade abundante. Muitos perfumes são “genderless” e veganos.

O Brasil é um dos maiores mercados de perfumaria do mundo. Em 2023, segundo dados preliminares da consultoria Euromonitor International, o movimento foi de R$ 33,8 bilhões nas fragrâncias de massa, com crescimento de 8,6% em relação a 2022. O segmento premium, marcado pela exclusividade dos produtos, cresceu 13,7%, chegando a R$ 4,1 bilhões. A estimativa é que, até 2027, os perfumes premium somem R$ 6,8 bilhões, com aumento de 89% (desde 2022), mais que o dobro do mercado de massa, que crescerá 42,1%, com receita de R$ 44,3 bilhões.

A estratégia das companhias autorais é aliar um produto de qualidade a uma experiência de luxo, que cative o cliente e o faça fiel, a despeito do preço mais elevado.

“A perfumaria autoral faz parte do mercado de luxo, mas a perfumaria de luxo não é necessariamente autoral”, diz Guidi, da Amyi. Entender a diferença requer saber como funciona a indústria mundial de perfumes. Em geral, as grandes marcas dão ao perfumista uma descrição detalhada do cheiro a que querem chegar, baseados em dados mercadológicos. É o ““briefing”, que visa assegurar que o produto tenha larga aceitação, já que sua viabilidade depende de um grande volume de vendas.

Os perfumistas não são exclusivos de uma marca, com raríssimas exceções. Eles trabalham para as casas de fragrância, que são detentoras das matérias-primas. As maiores são as suíças Givaudan e Firmenich, a alemã Symrise e a americana IFF.

O que ocorre a seguir é uma espécie de licitação: cada casa de fragrância escolhe um perfumista, cujo trabalho é submetido ao crivo da marca para a seleção do vencedor. As demais fragrâncias são abandonadas. “É um modelo em que o pai mata os filhos”, diz Alessandra Tucci, fundadora da Paralela, escola de formação em perfumaria que tem chancela da francesa Cinquième Sens.

Na perfumaria autoral, a regra é diferente: quase não há briefing e a “licitação” não é usual. Em vez disso, a marca prefere cultivar um relacionamento próximo com o perfumista e adquirir essências sofisticadas. “Não se investe muito em propaganda no segmento. Os frascos são bem-feitos, mas menos elaborados. O investimento maior é mesmo no cheiro”, diz Tucci.

A estratégia de negócios também está muito associada à internet, seja pelas vendas no comércio eletrônico ou o marketing via redes sociais. A Amyi (lê-se Amí) foi criada sem lojas físicas. “Nascemos digitais”, afirma Guidi. Essa decisão foi essencial na formação de preço. “Só com o comércio eletrônico conseguimos fixar um preço mais acessível. Enquanto perfumes importados com o mesmo nível custam entre R$ 1,5 mil e R$ 2 mil, nosso frasco de 100 mililitros sai por R$ 569”, diz a executiva.

A empresa criou um teste on-line no qual o cliente fala de seus hábitos e recebe indicações de perfumes. Ele pode comprar um kit com seis minifrascos antes de se decidir por uma embalagem maior e, assim, evitar arrependimentos.

Outra marca brasileira, a Lenvie Parfums começou a atuar 12 anos atrás com produtos para casa, como velas e aromatizadores. Há quatro anos, se lançou na perfumaria pessoal. “Sempre quisemos fazer essa transição, mas esperamos um pouco para estar bem-alicerçados”, diz o fundador Fábio Ottaiano. A companhia trabalha com dois perfumistas: o neozelandês Isaac Sinclair e a francesa Fanny Grau. O “briefing” mais recente foi uma única palavra: “pêssego”.

Nos produtos para casa, a Lenvie começou no atacado e depois foi para o on-line. Com os perfumes, fez o caminho inverso: começou na internet e agora busca espaço em lojas físicas. A empresa tem 1,3 mil pontos de venda, como lojas de decoração e presentes. Os perfumes estão em 10% deles.

Um dos desafios para as marcas autorais é vencer a resistência do consumidor em adquirir produtos nacionais. Esse cenário tem mudado nos últimos tempos, com o investimento crescente da indústria brasileira de perfumes, mas é consenso que ainda há muito a fazer.

Para aumentar a aceitação, as casas autorais dirigem seus esforços de comunicação à educação do público, com destaque para a qualidade de suas criações. O objetivo é ultrapassar fronteiras e estabelecer uma marca Brasil, que tenha reconhecimento no exterior, como ocorre em campos como música, gastronomia e design.

“Os franceses trabalham com perfumaria há centenas de anos, mas isso não acontece com países como EUA, Alemanha e Inglaterra, que também conseguiram criar marcas de respeito. Por que o Brasil não poderia fazer o mesmo?” diz Fernanda Elisa Orcioli, fundadora da Felisa. “Já tive várias reuniões internacionais e percebo que há espaço”.

A Felisa prepara-se para dar um passo ambicioso: com apenas 11 meses de atuação, vai começar a exportar. “As negociações estão bem avançadas”, conta Orcioli, que fez carreira no mercado de luxo, em grifes como Gucci, Paco Rabanne e Carolina Herrera.

Perfume é coisa séria: movimenta bilhões e mexe com a emoção”
— Luciana Guidi

Com seis perfumes lançados, a Felisa tem 20% das vendas no meio on-line e 80% em lojas de perfumes. São 30 pontos em oito cidades. A meta é dobrar o número neste ano. “Na loja física, o consumidor pode pegar o frasco, sentir seu peso, ver a qualidade da tampa. Mas a distribuição precisa abraçar a perfumaria autoral brasileira. É um desafio. Em algumas lojas, a Felisa é a primeira marca nacional a ser vendida”, diz Orcioli

A Felisa trabalha com perfumistas de três casas de fragrância. Nas vendas via internet, os produtos são acompanhados de cartão e papel personalizados, entre outros cuidados. “Isso é investimento, não gasto”, afirma Orcioli. “Como está disposto a pagar mais, o consumidor de luxo espera receber mais.”

Grandes companhias de cosméticos também estão investindo no segmento autoral. O Grupo Boticário lançou as linhas Privée, com dez fragrâncias, e Alchemists, com quatro. Essa última foi criada por perfumistas especialmente convidados e está disponível em lojas selecionadas e no e-commerce. Na loja-conceito de Pinheiros, zona Oeste de São Paulo, O Boticário oferece a Experiência Privée, um serviço sob medida. Com a ajuda de um perfumista, o cliente escolhe entre as bases prontas, às quais acrescenta outros elementos de sua escolha. A consulta dura 80 minutos e usa inteligência artificial para sugerir combinações das notas. Ao fim, o consumidor sai com o perfume pronto, que pode batizar com o nome que quiser.

“O perfume autoral surgiu porque o consumidor buscava algo personalizado. Entramos na perfumaria de nicho porque há consumidores que buscam [esses produtos] em marcas estabelecidas”, diz Gustavo de Campos Dieamant, diretor de pesquisa e desenvolvimento do Grupo Boticário. “Personalização é o tema.”

A previsão é que a tendência permaneça forte. “No Brasil, 62% dos consumidores dizem que vão consumir produtos personalizados nos próximos anos”, diz Cesar Antonio Veiga, perfumista do Grupo Boticário, citando dados da consultoria Consumoteca. Além de trazer novos consumidores, a perfumaria autoral ajuda a detectar tendências e influencia os produtos de massa, afirma Veiga.

A perfumaria autoral começa a atrair o interesse dos investidores. A Felisa acabou de receber um aporte de capital-semente, destinado a companhias em fase inicial. Os recursos serão usados majoritariamente em marketing e desenvolvimento de produto. “Este é um ano-chave para a Felisa, que marca nossa entrada no mercado internacional”, afirma Orcioli. “Portas estão se abrindo”.

Na Lenvie, o crescimento até agora foi orgânico, sem aporte de investidores, mas a empresa avalia fazer uma captação, diz Ottaiano. “Se acharmos o parceiro certo, que além de recursos traga experiência e sinergia de valores, pode ser interessante.”

Perto de chegar ao ponto de equilíbrio, com receita e despesa empatadas, a Amyi estuda um aporte série A, que é uma etapa mais madura de investimento. A companhia está sendo sondada para iniciar as exportações e planeja usar os recursos para ampliar a distribuição e fortalecer a comunicação. “No Brasil, para falar que algo não é importante, as pessoas dizem ‘isso é perfumaria’, diz Guidi. “Mas perfume é coisa séria: movimenta bilhões de dólares e mexe com a emoção das pessoas.”

Fonte: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2024/03/21/mais-caro-e-ousado-perfume-de-nicho-abre-espaco-no-mercado-brasileiro.ghtml

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *