Após experimento no Brasil com altas doses de medicamento contra a malária terminar com a morte de 11 pacientes, pesquisa nos EUA também sugere ineficácia da cloroquina contra a doença e maior mortalidade. Paralelamente ao desenvolvimento de uma vacina, cientistas de todo o mundo estão pesquisando se medicamentos já existentes também são eficazes contra o vírus Sars-Cov-2. Nas últimas semanas, fez-se grande alarde em torno do Resochin, cujos princípios ativos cloroquina e seu derivado hidroxicloroquina são empregados há décadas na prevenção e tratamento da malária.
Em experimentos de laboratório e em dois estudos clínicos na China e na França – embora envolvendo um número pequeno de casos – a cloroquina teria inibido a multiplicação do novo coronavírus em culturas celulares. Assim, a substância poderia teoricamente ser empregada como antiviral em casos graves de covid-19.
No entanto, segundo uma pesquisa mais recente nos Estados Unidos – ainda não submetidas a avaliação independente (peer review) -, o medicamento antimalária não seria apenas em grande medida ineficaz no combate ao coronavírus. Na comparação direta, a taxa de mortalidade entre pacientes de covid-19 mostrou-se significativamente mais elevada após um tratamento com hidroxicloroquina: 28%, contra 11%, nos pacientes que receberam o tratamento padrão. Ao todo, os pesquisadores americanos estudaram os registros médicos de 368 internados em hospitais para militares veteranos.
Quando a hidroxicloroquina foi tomada com o antibiótico azitromicina – combinação favorecida pelo cientista francês Didier Raoult, cujo estudo sobre o assunto em março provocou uma onda de interesse global pela droga, a taxa de mortalidade verificada foi de 22%. A hidroxicloroquina, com ou sem azitromicina, era mais provável de ser prescrita para pacientes com doenças mais graves, mas os autores descobriram que o aumento da mortalidade persistiu mesmo depois de feitos ajustes estatísticos nas taxas mais altas de uso.
Mortos em experimento no Brasil
Apesar das ressalvas quanto à realização e à relevância dos experimentos, assim como quanto aos possíveis efeitos colaterais, foram feitos testes com o tradicional remédio antimalária em diversos locais.
Um pequeno estudo de fase 2 no Brasil mostrou quão perigoso é o tratamento com cloroquina de enfermos de covid-19, sobretudo em combinação com o antibiótico azitromicina ou outros medicamentos, culminando na morte de 11 participantes, em decorrência de arritmias ou danos dos músculos cardíacos.
Do estudo financiado pelo Estado brasileiro, cujos resultados provisórios foram publicados pelo portal científico MedRxiv, participaram 81 pacientes hospitalares. Na realidade, estavam previstos 440 participantes.
A equipe liderada por Marcus Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical de Manaus, ministrou a cerca da metade dos participantes uma dose total de 12 gramas de cloroquina ao longo de dez dias. Os demais receberam 2,7 gramas ao longo de cinco dias. Não houve um grupo de controle, tratado apenas com placebo.
A equipe de Lacerda registrou, dentro de dois a três dias, distúrbios do ritmo cardíaco entre os pacientes com dosagem alta. No sexto dia, 11 deles morreram, e o estudo foi suspenso.
Negligência médica em Manaus?
Normalmente os medicamentos contra a malária só são aplicados em doses mais baixas e por apenas poucos dias. No experimento brasileiro, a dosagem estava acima até mesmo das recomendações das autoridades chinesas (dose total de 10 gramas, ao longo de dez dias) e do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA (3,3 gramas ao longo de cinco dias).
A maioria dos pacientes de covid-19 é mais idosa do que os de malária, e apresenta enfermidades pré-existentes. Num grupo de risco como esse, é muito mais provável que um tratamento com doses altas de cloroquina provoque danos do músculo cardíaco e distúrbios rítmicos graves.
Como não havia um grupo de controle no estudo de Manaus, é difícil determinar o papel exato da cloroquina nos óbitos. Como agravante, todos os participantes foram adicionalmente tratados com o antibiótico azitromicina, também responsável por alterar o ritmo cardíaco. Além disso, alguns haviam igualmente tomado oseltamivir (Tamiflu), com efeito colateral análogo.
Em princípio, tanto a cloroquina quanto a hidroxicloroquina são princípios ativos seguros e bem tolerados. O medicamento Resochin, produzido pelo conglomerado alemão Bayer, já vem sendo utilizado com sucesso desde a década de 1930 na terapia ou profilaxia da malária.
Por outro lado, seus riscos e efeitos colaterais são igualmente conhecidos. Em doses extremamente altas, numa automedicação errada ou entre certos grupos de pacientes, também medicamentos estabelecidos podem causar danos graves. Agora será preciso investigar se nos estudos clínicos da Fundação de Medicina Tropical de Manaus houve dosagem excessiva por negligência ou se foram ignoradas advertências.
Seres humanos como cobaias?
O desenrolar fatal do estudo de fase 2 no Brasil coincide com um debate na TV francesa – considerado profundamente racista – entre os médicos Jean-Paul Mira e Camille Locht, que propuseram transformar a África num gigantesco laboratório de testes para uma vacina da covid-19.
Como justificativa “provocadora”, o especialista em tratamento intensivo Mira citou a escassez de recursos no continente, e consequente falta de proteção contra o vírus, comparando com pesquisas sobre a aids feitas com prostitutas. As declarações provocaram indignação em âmbito mundial.
Apesar de todos os riscos, testes clínicos são indispensáveis ao se desenvolver uma vacina ou medicamento. Só com a cooperação entre fabricantes, clínicas e instituições médicas é possível saber se os compostos realmente apresentam o efeito terapêutico pretendido (eficácia), se são seguros ou se têm efeitos colaterais (tolerância), como devem ser ministrados (dosagem) e se, no fim das contas, o benefício realmente justifica os riscos.
Nos estudos de fase 2, costumam-se convocar de 100 a 500 pacientes voluntários para participar dos exames. Na maioria dos países, diretrizes legais rigorosas regulamentam a realização de estudos clínicos, a fim de limitar os riscos para os participantes, que em geral precisam confirmar por escrito sua concordância, após serem informados detalhadamente pelos médicos sobre os riscos e eventuais efeitos colaterais.
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