Nos canaviais e nos galpões de envelhecimento das cachaças de alambique de Minas Gerais que disputam a preferência do consumidor pela diversidade de sabores e o processo bem cuidado de fabricação, a corrida contra os efeitos perversos da recessão sobre as vendas pode ter perdido força, mas não para.
O chamado segmento premium desse mercado não passou ileso ao tombo do comércio, e, sim, foi um dos mais afetados, de acordo com o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac). A despeito da tormenta, os produtores do estado, o quarto polo produtor do país em volume total da bebida, vêm mantendo investimentos para melhorar a qualidade da popular ‘marvada’.
Duas frentes de trabalho seguem ativas neste ano, a seleção de leveduras e a inovação no uso de madeiras de árvores brasileiras para armazenar e envelhecer o típico produto nacional.
As linhagens dos fungos benéficos próprios da cana-de-açúcar, na fermentação, podem ajudar bastante a melhorar o aroma e o sabor, além de proporcionar padrão de qualidade à bebida.
O esforço é desafiador em 2017, para o diretor-executivo do Ibrac, Carlos Lima. “Apesar de todo o trabalho para reposicionamento da cachaça, há muito o que se fazer. Boa parte dos brasileiros ainda não consegue enxergar a cachaça como um destilado de qualidade e em condições de competir com os demais, como um uísque, vodca e rum”, afirma.
A retração das vendas no mercado interno durante o ano passado pode ter se aproximado de 4%, movimento inverso ao das exportações, que cresceram 7,8% em volume e 4,6% em valor, ao gerar receita de US$ 13,94 milhões.
Contudo, os embarques feitos para 54 países por um universo superior a 60 empresas em 2016 são modestos, tendo em vista o fato de representarem menos de 1% da produção do Brasil, estimada em 800 milhões de litros por ano.
A queda dos negócios no mercado brasileiro acompanha o encolhimento da indústria de bebidas em geral.
Os primeiros indicadores sobre o comportamento do consumo neste ano pesquisados em janeiro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicaram recuo de 7% ante o mesmo mês de 2016, considerando-se, junto à comercialização de bebidas, o desempenho dos hipermercados, supermercados, alimentos e fumo. No período acumulado dos últimos 12 meses, houve diminuição de 3,2%.
A principal explicação para os números está na massa de rendimentos menor habitualmente recebida, descontada a inflação, segundo o IBGE.
Em Salinas, no Norte de Minas, os produtores buscam a melhor levedura adaptada à região, um segundo passo para diferenciar o produto depois da conquista do selo de indicação geográfica emitido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi).
A Associação dos Produtores Artesanais de Cachaça de Salinas (Apacs) se envolve diretamente nessa iniciativa em parceria com o Instituto Federal do Norte de Minas (Ifet), conta o presidente da Apacs, Eilton Santiago.
“Identificar qual é a levedura melhor adaptada à região nos dará um padrão de qualidade. Hoje, a preocupação é toda voltada para a qualidade por causa da concorrência maior”, afirma.
Inovação mundial
A certificação do Inpi, que está na segunda remessa, se tornou uma das principais armas dos competidores na região. No guarda-chuva da Apacs, estão abrigados 26 produtores e 70 marcas. José Lúcio Mendes Ferreira, presidente da Academia Brasileira de Cachaça de Alambique, destaca que o movimento dos produtores para aprimorar a cachaça com maior valor agregado é fenômeno mundial, inclusive o empenho especial das pequenas destilarias da bebida artesanal tanto no Brasil, quanto nos Estados Unidos e na Escócia.
Recursos financeiros estão sendo aplicados em equipamentos e serviços relacionados ao processo de produção. “Não é volume que interessa. Buscamos alternativa e soluções para o produtor desenvolver a bebida premium”, afirma Lúcio Mendes Ferreira, também presidente do Centro Brasileiro de Referência da Cachaça.
O avanço da seleção das leveduras reflete uma importante interferência no processo de produção em lugar de deixar o curso normal da fermentação. Há cerca de 4,5 mil leveduras conhecidas.
No tempero dos toneis
Atenção especial com a etapa de envelhecimento da cachaça premium é dedicada, em Bom Despacho, no Centro-Oeste de Minas, pela Cachaçaria Melicana, que nasceu 12 anos atrás do interesse do então produtor de móveis Carlos José de Assis de desenvolver uma bebida destilada de alta qualidade. Primeiro sugiram as aguardentes de mel e melado e mais tarde cachaças tradicionais. Para ter total controle sobre o produto final, Carlos e a sócia, a mulher dele, Lélida Cardoso, decidiram assumir também a produção dos toneis de madeiras brasileiras que conferem aroma, sabor e cor diferenciados ao produto.
Com o selo de acompanhamento do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o armazenamento é feito em blend (mistura) de madeiras de amburana, castanheira e ipê, conta Lélida Cardoso. “Não vendemos antes de o produto completar dois anos no processo de envelhecimento. Queremos atender o público que valoriza muito as nossas raízes, quer conhecer um produto puro e paga por isso”, afirma. Os galpões de 1,5 mil metros quadrados da Melicana acabaram sendo abraçados pela cidade, com o crescimento de Bom Despacho nos últimos anos.
A cachaçaria tem toneis de até 17 mil litros e, agora, está produzindo recipientes menores, para abrigar 700 litros. O uso das madeiras brasileiras, por si, já confere atributos sensoriais únicos à cachaça de alambique feita no país, observa Míriam Alvarenga, fiscal agropecuária e coordenadora do Programa de Certificação da Cachaça do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA). As espécies mais usadas têm sido amendoim, jequitibá, bálsamo, amburana, grápia, ipê e castanheiras. “Há uma diversidade grande e o mais importante é que todo o diferencial está nas boas práticas de produção que o setor vem buscando”, afirma.
Certificação
A crise da economia brasileira se refletiu no número menor de marcas cerificadas no ano passado, de acordo com a coordenadora do IMA – no ano passado, o balanço foi de uma centena de marcas qualificadas, ante 120 no ano anterior. Agora, a expectativa é de que o início da safra no mês que vem dê o tom da procura pela certificação em 2017.
Diferenciar o produto dos concorrentes envolve persistência que os pequenos produtores aprenderam a cultivar. Lélida Cardoso, da Melicana, diz que em 11 anos de fabricação, as vendas foram incipientes até que os proprietários se convenceram do prazo ideal de envelhecimento e a estrutura comercial ainda está sendo montada.
O alambique já comercializa em mercados do Sudeste, Sul e do Nordeste. O objetivo é levar as vendas a 5 mil garrafas por mês nos próximos dois anos e ingressar no mercado internacional.
As garrafas de 700ml de cachaças tradicionais armazenadas em madeiras de castanheira e amburana têm preço sugerido de R$ 49. A aguardente de mel de abelha, como único ingrediente, fermentada e destilada é envelhecida em barris de carvalho e tem preço sugerido de R$ 260 pela garrafa de 700ml. Destilada da fermentação da cana-de-açúcar, a aguardente de melado é envelhecida em madeira de castanheira e ipê, com preço sugerido de R$ 56.
Novo gás com o Simples
O ingresso dos produtores de cachaça no sistema de tributação de micro e pequenas empresas conhecido como Simples a partir de janeiro de 2018 pode dar novo gás aos investimentos das destilarias menores.
O diretor-executivo do Ibrac, Carlos Lima, afirma que o benefício representa importante avanço, embora não libere o setor da luta para reverter a alta carga de impostos incidente sobre a bebida.
Estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) identificou que a cachaça brasileira é tributada na proporção de 81,87%. O percentual mantém o produto na liderança do ranking dos itens mais taxados no país.
“Como produto típico e tradicional, o Brasil deveria é incentivar a cachaça”, afirma Lima. Eilton
Santiago, presidente da Apacs, diz que os produtores de Salinas trabalham com expectativa de redução entre 20% e 30% do imposto total pago, assim que o ingresso no Simples começar a fazer efeito.
“A tributação é violenta, chegando a representar de 30% a 40% do nosso custo de fabricação”, reclama.
Raciocinando com a média da taxação brasileira sobre o setor, José Lúcio Mendes Ferreira, da ABCA, destaca que a cada 10 garrafas envasadas de cachaça, é como se oito delas fossem levadas pelo fisco. “São tributos brutais que tiram o fôlego dos produtores e dos investimentos em diferenciação de produtos e marketing.”
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