Ex-presidente da Abra chama atenção para risco de desabastecimento e mais inflação; Câmara discute PL
Os estoques médios de alguns alimentos no Brasil estão aquém do índice mínimo de segurança alimentar necessário para o país, que gira em torno de 20% do consumo anual.
É o que aponta um levantamento feito pelo engenheiro agrônomo Gerson Teixeira, ex-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), com base em dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outras instituições.
Teixeira afirma que os números apontam para o risco real de uma crise de desabastecimento no país. “Nós só não já estamos passando por uma crise alimentar, inclusive de consequências políticas imprevisíveis, porque o consumo está represado por conta da fome, do desemprego e da queda da renda”, alerta o especialista, para quem o país carece de uma injeção de ânimo no setor de produção de alimentos nesta fase atual.
O estoque atual de milho, por exemplo, mensurado a partir dos números verificados no período entre janeiro e maio, é de 256,5 mil toneladas, o equivalente a um dia e meio do consumo nacional, que é de 61,5 milhões de toneladas. A quantidade de arroz, que está em 21,5 mil toneladas, é mais escassa, representando menos de um dia do consumo total do produto no país.
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Outras mercadorias apresentam um quadro considerado ainda mais grave. O trigo, matéria-prima típica para a fabricação de pães e outros produtos, apresentou estoque médio de 1,5 mil toneladas entre janeiro e maio – índice que precisaria ser ampliado 21 vezes para garantir um dia de consumo nacional.
O feijão, leguminosa que está entre as mais populares na mesa dos brasileiros, também é destaque na lista, com reserva atual de 160 toneladas. A marca precisaria aumentar 53 vezes para atingir um dia de consumo do país.
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Não menos importante, a farinha de mandioca apresentou média de 196 toneladas nos cinco primeiros meses de 2020, enquanto o consumo nacional ultrapassa os 8 milhões ao ano. Na prática, o índice atual é 119 vezes menor que o de um dia de consumo dos brasileiros.
Paralelamente a isso, as iniciativas e medidas que investem no agronegócio, atividade típica do ruralismo monocultor e exportador, têm caminhado no sentido contrário. Em 2019, a produção de soja, carro-chefe do setor, consumiu mais de 49% dos R$ 61,8 bilhões do crédito rural canalizado para subsidiar as lavouras do país.
O Programa de Fortalecimento de Agricultura Familiar (Pronaf) é outro destaque. Historicamente voltada para a produção de alimentos que chegam à mesa do brasileiro, a política liberou, no ano passado, 42% dos investimentos para lavouras de soja, concentrando as atenções nos interesses do agronegócio em detrimento dos produtores de alimento.
“O governo não tem política nenhuma para dar atenção a esses produtores. Outra demonstração clara disso é o Plano Safra 2020/2021, lançado há poucos dias, que não trouxe política específica pra agricultura familiar”, lembra ainda o deputado Nilto Tatto (PT-SP), da Frente Parlamentar da Segurança Alimentar e Nutricional.
Inflação
Além do risco de falta de produtos no mercado, a situação dos estoques tem como consequência de peso a inflação no preço dos alimentos em geral.
Dados do IBGE mostram que, nos primeiros quatro meses, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA) apresentou variação de 0,22% e o índice que trata da “alimentação no domicílio” saltou 3,94%, o que representa 18 vezes mais que o índice geral.
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Alguns produtos tiveram aumento significativo no período. O preço médio da cenoura, por exemplo, subiu 97%. Tomate (52%), cebola (49%), batata (42%), feijão (23%) e banana (20%) também registraram alta.
Francisco Dal Chiavon, do Setor de Produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), aponta que o aumento no preço de produtos como esses se insere no contexto de falta de investimentos governamentais no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra produtos da agricultura familiar, e no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O cenário foi ainda mais afetado pela pandemia, que impôs limitações ao comércio.
“Não colocaram mais recursos, então, eles vão, em outras palavras, deteriorando os planos, e aí vão acabando porque não tem recurso. E quem produzia esses produtos teve que abandonar, porque não acha mais pra quem vender. A feira foi proibida em função da covid-19 e houve mais essas questões do PAA e do PNAE”, explica Chiavon.
Futuro
Para Gerson Teixeira, o cenário de baixa nos estoques, alta dos preços, desemprego e agravamento da crise econômica pede medidas emergenciais direcionadas à produção de alimentos. “Qualquer programa de recuperação da economia hoje, se não tiver algo ousado e voltado pra isso, nós vamos ter um problema sério”, projeta.
O apontamento feito pelo engenheiro agrônomo dialoga com o conteúdo de diferentes propostas que tramitam na Câmara dos Deputados e pedem políticas voltadas ao setor.
Ao todo, mais de 20 projetos de lei (PL) trazem esse teor e miram o período da pandemia. As medidas tramitam de forma conjunta e têm como destaque o PL 886/2020, de autoria da bancada do PT, que já teve o rito de urgência aprovado, mas ainda aguarda a apresentação do parecer do relator, deputado Zé Silva (Solidariedade-MG).
O projeto prevê um conjunto de iniciativas de socorro a agricultores familiares durante a crise do coronavírus.
Entre elas, estão: liberação de crédito rural com facilidades para o segmento, desenvolvimento de assentamentos rurais para 108 mil famílias, renegociação de dívidas; apoio a tecnologias sociais de acesso à água e medidas específicas para mulheres, com crédito destinado a elas.
Um dos objetivos do pacote é que o governo compre produtos da agricultura familiar para distribuir para a população mais vulnerável nas zonas urbana e rural.
“Essa proposta seria importante pra dar uma reanimada na agricultura familiar e ajudar famílias que precisam de cestas básicas, famílias que estão parando de produzir porque não têm os espaços de comercialização por causa da quarentena, principalmente as que vendem em feiras e restaurantes. Esse apoio é estratégico justamente pra retomar essas produções para a formação de estoques e, assim, o poder público poder fazer o seu papel de apoiar a distribuição de alimentos”, argumenta Nilton Tatto.
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